Pinturas |
CERVANTES
E A INDIVIDUALIDADE Cervantes escreveu a história de D. Quixote no estilo barroco
e lançou o livro em 1606. No final da história, D. Quixote continuou vivo. Dado
o sucesso da obra, que alcançou imediatamente leitores da China à América,
um oportunista de Tordesilhas publicou a sua continuação, à revelia do
autor. Ao saber disso, no fim da vida, para manter a coerência,
Cervantes resolveu escrever a continuação da novela. Passados dez anos do
lançamento do livro, ele acrescentou, em estilo moderno, a segunda parte da
história, e, dessa vez, D. Quixote morre. Cervantes, com sua obra-prima, foi o
primeiro a fazer a transição do estilo barroco para o moderno. Pioneiro,
absolutamente exemplar, é sagaz em sua narrativa, sem se trair nem se incriminar,
andando sobre brasas, no “fio da navalha”, dribla a Inquisição. Escapa!
Publica. O livro conta o drama de quem abdica da sua vocação, da sua
personalidade e das próprias experiências, para moldar a sua vida pela
experiência alheia, na “palavra escrita” (ainda não havia o rádio). Os antigos
livros de cavalaria, que narram histórias passadas 300 anos antes do seu tempo,
norteiam sua vida. Ele incorpora o heroico cavaleiro andante desse tipo de
literatura. D. Quixote foi usado por Cervantes como metáfora para
criticar a relação dos cristãos com a Bíblia; dos judeus com o Torá; e dos
muçulmanos com o Alcorão. Em sua obra, espertamente sai da reta, não assume a
autoria da história, nem do prefácio. Em clima de inquisição cega e violenta na
Espanha do seu tempo, Cervantes passa ileso pelos tribunais. Isso não aconteceu
pela qualidade do trabalho, pois a tela “Leda e o Cisne”, de Leonardo da Vinci,
foi queimada na fogueira; Galileu foi condenado. Cervantes se safou por dominar
com genial competência a arte de escrever dando, com incrível sutileza, o seu
recado: o valor da individualidade; o desprezo dos preconceitos e da
prepotência; a importância do espirito cientifico (observação e experiência).
Tudo sem que os censores o percebessem. Em 2006 realizamos no Ateliê uma homenagem a Cervantes, que
constou de exposição de pinturas, textos e palestras (de Ester Abreu, sobre o
autor; de Pierre Debbané, sobre as frases de Sancho Pança; e minha, sobre o
livro). Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115. Abril, 2016 |
DOM QUIXOTE COMPLETO. QUATROCENTOS
ANOS EM 2016. O livro de Cervantes, Dom Quixote ("verdade", em aramaico) é o
mais difundido no mundo. Foi traduzido para o inglês junto com a Bíblia e
chegou ao Oriente, antes de ser lançada a segunda parte da história (1615).
Conquistou ilustradores como Doré, Daumier, Hogarth, Goya, Picasso,
Portinari... Influenciou Dostoievski, Shakespeare, Walter Scott, Charles
Dickens, Flaubert, Joyce, Jorge Luiz Borges, Machado de Assis, Lima Barreto... Dom Quixote é uma obra genial escrita no olho do
furacão da Inquisição (Espanha). É sátira cruel ao homem, que abdica da
individualidade, moldando sua vida e sentimentos pela palavra escrita, e que é
capaz de jurar, com a mão sobre o livro, ter fé, seguir os preceitos e dizer a
verdade. Novela composta com inteligência e sutileza foi examinada e aprovada
por doutores em teologia de tribunais poderosos. Galileu, seu contemporâneo
(1564-1642) que desenvolveu o Método Experimental, não tem a sutileza de
Cervantes. Publica as provas da verdade do sistema de Copérnico e, no ano
seguinte, tem que abjurar suas crenças perante a Inquisição. Dom Quixote fez triste figura, por incorporar a
ética da cavalaria medieval num mundo já moderno, em ambiente religioso,
autoritário e místico, cuja sociedade se tornara comercial (grandes navegações)
e capitalista (em Londres, em 1564, abre-se a primeira Bolsa de Valores, e em
Amsterdã, em 1609, o primeiro Banco). Sansão Carrasco personifica a amizade e determinação. Só
aparece na segunda parte do livro, publicada 10 anos depois da primeira. O
bacharel ardiloso parte, duas vezes, no lombo de um cavalo e por quilômetros,
metido numa armadura incômoda e fora de época, disfarçado de Cavaleiro dos
Espelhos e Cavaleiro da Branca Lua, persegue o amigo até vencê-lo, trazendo-o
para casa. Embora as religiões tenham evoluído por força do
desenvolvimento das ciências (que tirou a Terra do centro do universo e o homem
de seu status divino especial, de imagem e semelhança de Deus), a condição
humana não mais será a mesma após o séc. XVII. Espinosa, em 1654, sugere que
Ciência e Bíblia nunca poderão ser reconciliadas. Produto de uma época que gerou Shakespeare e Montaigne,
Cervantes me lembra dois escritores cariocas: Machado de Assis e Lima Barreto.
É sempre um prazer reler qualquer um dos cinco: leves, risonhos e profundos. Cristão de origem judaica, que diz ser “ghost writer” de um
árabe (Cid Hamete Benengeli), preconiza o ecumenismo. Ele vive e escreve sua
sátira, no ponto de encontro das três grandes religiões de inspiração divina:
Islamismo, Judaísmo e Cristianismo. Uma das passagens do livro que sempre lembro é a do louco de
Sevilha. Quando ele já ganhava a liberdade por ordem do Arcebispo, outro
enjaulado, ao ver o colega sair, rogou praga contra a cidade dizendo ser Júpiter
e ameaçando com privação de chuva. Ao ver a preocupação dos responsáveis por
sua libertação, diante dessas ameaças, o anistiado disse ao louco ameaçador:
“Se és Júpiter, eu sou Netuno, rei das águas e anularei tua praga”. O que
bastou para que as autoridades reconsiderassem e, alegando resguardar a
cidade da disputa entre fabulosas entidades, o mantivessem no hospício. Dom Quixote, como todos
nós, é o que pensa e acredita ser. Diferente de Galileu e Newton, que utilizam
as próprias percepções para fazerem deduções, ele aceita a experiência alheia:
incorpora Roldão e Amadis (cavaleiros andantes). Galileu e Newton edificaram a
ciência moderna. D. Quixote, no leito de morte, reconhece seu engano medieval:
Viveu? Valeu? Kleber Galvêas – pintor. Tel. 3244 7115
novembro/2006 |