MIOPIA CULTURAL

Na noite de 24 de dezembro de 1973, no Mercado da Capixaba participei, com alguns alunos, da primeira feira hippie que aconteceu em Vitória. Procurando chamar a atenção dos passantes, para nossos artesanatos, agitava um chocalho quando alguém se aproximava da barraca.
Lá pelas 20 horas apareceram três visitantes, com um violão e pequeno tambor. Sentados no chão, começaram a tocar e cantar músicas que eu não conhecia. Curioso, me aproximei e o ritmo de suas canções conduziu meu chocalho. Tocamos, cantaram e conversamos.
O cantor, compositor das músicas, disse que estava chegando de Alagoas, e pretendia atuar no Espírito Santo. Lembrei que Roberto Carlos, Imperial, Menescal, Altemar Dutra, Paulo Sergio, Nara Leão..., só cresceram fora daqui. Pensei nos quatro melhores cantores/compositores da Barra do Jucu (apurados em concursos de calouros, anos 70) que se profissionalizaram: político (Duda), bancária (Noélia), artesão (Léo) e lixeiro (Toninho).
Depois de elogiar a qualidade e originalidade das músicas do visitante, recomendei que seguisse para o Rio. Ele alegou que não tinha recursos, estava em Vitória trazido por amigos e não conhecia ninguém por lá.
Insisti que aventurasse e descobrisse onde moravam artistas famosos e inteligentes, como o Caetano, Gil, Elis ou Chico Buarque. Na calçada de um deles, tocando e cantando por alguns dias, seria notado. Disse-lhe que tinha certeza que, quando ouvido, a qualidade das composições despertaria interesse por dois motivos: primeiro, todo bom cantor gosta de ouvir uma boa música; segundo, o artista inteligente sabe que revelar um talento é gratificante, é como colocar uma pedra no pedestal da sua própria realização.
A feira acabou antes da meia-noite e cada qual foi para sua casa passar o Natal. Depois de alguns anos (três?) recebi a visita de Luciana Vellozo, uma das alunas que participaram daquela feirinha. Então fiquei sabendo que o cantor daquele natal era o Djavan, projetado no cenário nacional, apoiado por artistas famosos.
Até hoje não sei se a estratégia adotada por ele, foi a sugerida em Vitória. Acredito que se tivesse permanecido aqui, suas músicas estariam esquecidas, como as de dezenas de outros cantores e compositores de talento. Tem sido assim com a música, teatro, literatura, artes plásticas e até com a nossa história.
Precisamos retirar os óculos de grau elevado para miopia, que insistimos em usar o tempo todo, enxergando bem só o que acontece ao longe: eles borram as imagens próximas.
Um dos maiores micos que paguei na minha vida aconteceu, em 1982, no Óregon (US). Visitando a redação de um jornal local para divulgar minha exposição, levei alguns recortes de jornais capixabas. Um destes divertiu os jornalistas americanos. Não pelo lado da folha onde estava meu trabalho, mas o oposto, dedicado aos 25 anos da morte do ator James Dean. Depois de passarem a página de mão em mão, rindo muito, me devolveram dizendo que aquela era prova concreta da eficiência ampla e persistente do colonialismo cultural americano. E em tom de brincadeira provocaram: “Arriba Brazil!”.
O compromisso da mídia não é com o artista, mas com a notícia. “Incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais” é obrigação constitucional do Estado (Art. 215). Ao artista compete produzir obras que alcancem o público, e este deve buscar informações originais, recusando insistentes pastiches da mídia local. Dos míopes culturais, espero que consigam lentes corretivas modernas, multifocais, para enxergarem tanto o que está distante, quanto o que está próximo.
Kleber Galveas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 www.galveas.com 01/09