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CIDADANIA E VESTUÁRIO

 

Quem nasce no Espírito Santo é espírito-santense. Quem vive aqui, ou de longe ama o Espírito Santo, é capixaba. Isso acontece porque a cultura é mais antiga do que as instituições sociais (cartórios, religiões,) e aqui, neste caso, ela prevaleceu sobre a política. O sentimento afetivo (amor) superou o cognitivo (conhecimento, convenções sociais), e nós podemos compartilhar o “ser capixaba”, nossa cultura e carinho, com aqueles que nos querem bem.  

Ontem a burca foi proibida na Dinamarca. Da noticia faziam parte duas entrevistas: uma cidadã dizia gostar de ver todo o rosto das pessoas com quem conversava, “pois não nos comunicamos apenas com a voz”; a outra afirmava que não se cometem crimes usando-se o véu centenário e que seria violência cultural sua proscrição em qualquer lugar. Para a primeira entrevistada, aplausos. À segunda eu informaria que aqui é comum cobrir-se o rosto com o uso de toucas ninjas e capacetes de motos em assaltos; e perguntaria se, levando o meu “primo”, índio isolado e permanentemente nu, que vive sua cultura milenar no interior da floresta, para um passeio a caráter, por cidades predominantemente muçulmanas, se o seu nudismo cultural seria permitido. Tenho a certeza de que o nosso índio, embora caprichasse em seus adornos, também seria reprimido, se caminhasse por qualquer cidade da civilização judaico-cristã ou do Oriente.

O nu tem precedência cultural e histórica sobre qualquer tipo de vestimenta. Negar ao ser humano ampla liberdade para se expressar, cobrindo-o com panos, é violência física e moral. Entretanto com o “progresso” da civilização, todos os países têm leis reprimindo a exposição do nu. Parece distante o século XVI, quando uma tribo brasileira foi levada para a França e exibiu sua nudez, durante um festival que durou um ano, nos jardins de Versalhes (Montaigne).

Minhas pinturas recentes, “Octógonos Floridos”, pretenderam apontar o nosso farisaísmo. Dizemos que somos “da paz e do amor”, mas prestigiamos muito mais os octógonos do MMA e UFC, do que os baguás. Cultuamos o vestuário e reprimimos o nu, inclusive na arte.

O traje de uma pessoa é apenas uma formalidade que pode ser facilmente trocado. Representações teatrais exploram seus efeitos. Radicalizar, obrigando mulheres a se cobrirem completamente, me parece expressão de uma cultura machista. Na vida em sociedade, em tempo de ataques terroristas, de “lobos e lobas solitários", foi prudente a proibição da burca na Dinamarca.

Arariboia, ao receber as terras de Niterói (séc. XVI) e a honra de Herói Nacional, em Palácio do Governo, compareceu vestindo caprichosamente o melhor traje, de acordo com a sua cultura. Entretanto foi menosprezado e objeto de anedotas pelos presentes à recepção, devido ao enorme cocar que, colocado sob seu braço em sinal de respeito, tinha as penas arrastando no chão. Nosso herói não oferecia nenhum risco. Assim, a reação dos presentes à cerimônia em sua homenagem foi um misto de inveja e preconceito.   

O grupo constituído por D. Pedro II e acompanhantes, ao visitar o primo austríaco, no navio ancorado ao largo na Baía do Espírito Santo (1860), foi descrito no diário do futuro Imperador do México, como o grupo mais mal-ajambrado que havia visto. Sete anos depois do encontro em nossa baía, D. Pedro II circulava pela Europa e o Imperador Maximiliano I teve sua roupa suja de sangue e ninguém criticou o seu vestuário. Foi fuzilado durante o governo do Presidente Juarez, de origem indígena, etnia Zapoteca, herói da consolidação da nacionalidade mexicana.

Onde eu estive, continuei espírito-santense e capixaba, mas procurei proceder como um nativo do lugar. Ao visitar uma mesquita na Argélia, tirei os sapatos; numa sinagoga em Barbados usei o kipá. Longe daqui pintei e mostrei o que fiz lá mesmo. Fui alfacinha em Lisboa, cowboy no Oregon e caipira na roça. Quando saio de casa, parece-me que é sempre mais interessante e prudente respeitar os costumes do novo ambiente que visito e estar aberto a novas experiências, buscar a integração e a aprendizagem.

Mas afinal, Arariboia não estava em casa?

 

Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 ateliegalveas@gmail.com www.galveas.com


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