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                                          VIRGILIO: Éclogas 10,69   - Omnia vincit Amor: Et nos cedamos Amori


 “O Amor vence a todas as coisas: e que nos cedamos ao Amor”                     

O AMOR VENCEU – Peça (comédia) em 3 atos  

ASSISTA O SEGUNDO ATO DESTA PEÇA CLICANDO:

 

ATORES – Quatro atores: casal (H e M) aparentando 50/60 anos (a mulher (M) faz papel de namorada + mãe - o Homem (H) de jogador de dominó + epicurista + namorado); 2 homens (cada um com 3 papéis: (A) narrador + jogador de dominó + farmacêutico – (B) jogador de dominó + professor + guarda).

PERSONAGENS – 10 personagens. Por ordem de entrada em cena:

- Narrador
- 3 jogadores de dominó (H, A e B)
- Epicurista


A – farmacêutico

B - professor

H – homem

M – mulher

G – guarda

CRIANÇAS - INVISÍVEIS

 

CENÁRIO – O narrador se posiciona na frente da cortina. Na ausência dela, deve sentar na cadeira que compõe, com outras três, o cenário do Ato 1. Sentará na que ficará permanentemente vazia.

CENA 1 – (A) - Narrador:

Boa noite (se assim for).

Vou ler, para os senhores, algumas considerações sobre a arte de representar: o teatro.

A arte só acontece se houver parceria, entre o autor e o público. Arte não é habilidade, habilidade é virtuosismo.

A arte não pode estar contida em objetos, num  palco, ou ação. Ela flui... Tem a mesma natureza do amor: impossível se realizar sozinha. Não existe amor de uma pessoa só, nem arte sem público. Assim, arte é o tipo de relação que se estabelece entre a obra criada, oferecida pelo artista e o público.

 

Poderá este palco comportar um cemitério? Aqui, a qualquer hora, podemos ter três horas em apenas um minuto? E o silêncio de uma noite calma, quando a lua cheia avança pelo céu? Um falso despacho de macumba pode ser profanado? E o amor caliente, discreto, íntimo, no escuro, pode vencer quem guarda a letra fria de uma lei contra o amor, contra a natureza? É o que veremos, aqui, neste modesto cenário.

 

Assim, RESPEITÁVEL PÚBLICO, atores que ensaiaram, desempenham papéis de tolos e esclarecidos, oferecendo a vocês uma comédia, que enaltece o amor.

 

Cientes das nossas limitações, apelamos para sua imaginação. Liberem seus pensamentos.

 

Citando Shakespeare: “Tudo está pronto se as nossas mentes assim estiverem”. (Narrador agradece e se retira)

 

ABRE A CORTINA – na sua ausência, a luz, que iluminava apenas o Narrador, passa a iluminar todo o cenário.

 

ATO 1

CENÁRIO

Interior de um bar muito simples (tela onde está pintado: 1 janela, 1 balcão, prateleiras com garrafas de bebida, potes de balas...); mesa com 4 cadeiras; 2 garrafas de cerveja (1 vazia) e 4 copos sobre a mesa.

ATORES

Três atores H, A e B (aparentando 50/60 anos jogando dominó):

CENA - 1

H (Homem)– A vida do nosso amigo (aponta a cadeira vazia) é um reloginho. Ouvi falar que ele dá a corda, mas é a mulher quem coloca para despertar. Assim, não falha. Nem precisa de coleira celular.

A (Farmacêutico) – (mostrando o celular). Está aqui a coleira da alienação atual. Somos monitorados...

B (Professor)Ele me disse que, quando demora, não tem cafuné. A Dona Patroa é brava. Sai da igreja e vai direto p­­rá casa, cheia de amor. Se ele não está no “muquifo”, chegou atrasado pra juntar, ela já jogou a comida pras galinhas do terreiro e não tem conversa. Ela fica de cara amarrada dois, três dias.

AEles são novos na Vila. Vieram do subúrbio violento de uma cidade grande. Com ela não tem hora, não adianta desculpa, qualquer coisinha, arma um barraco de acordar a vizinhança. É tensa, quer se impor aos gritos. Eu acho que o ambiente calmo da vila vai domar a fera. Nosso amigo é boa gente.

H Vamos ver. Eu ainda não conheço a distinta. Ouvi falar que é bem maior do que o baixinho.

B Maior, mais forte e muito mais peituda (faz gesto indicando peitos fartos). Uma matrona de origem italiana,  uma bela calabresa GG, (gestos indicando altura e volume), bonita, tipo exportação.

H Lá em casa é tranquilo demais, não sei se melhor, pois agora tenho solidão.

AEu, de vez em quando, enfrento um tsunami. Ela chama de TPM, mas tenho notado que a coisa é de lua. Quando está cheia, tipo hoje, amanhã, depois, toda atenção é pouca. O meu problema não é atraso, é outro... Madalena me acha o homem mais bonito e desejado do mundo. Uma preciosidade (faz poses de Zé Bonitinho e todos riem). Se uma mulher vem conversar comigo, fica alerta, arma o fuzil, e já disparou algumas vezes ferindo, mortalmente, algumas simples conversa e antigas amizades.

BCiúme! Praga global. Mulher é o ser mais poderoso do mundo. Tem uma arma infalível: o carinho. Mas geralmente não a consegue usar, por estar descuidada, enferrujada ou corrompida pela fofoca. Infelizmente isso anula esse seu poder, muito apreciado por todos nós.

AVocê está certo. Quando vou viajar a trabalho, o dia anterior é cheio de reclamações, a noite é de privação e o café da manhã amargo.

B Veja que contradição: ela ama você, lhe quer bem, mas te maltrata numa hora perigosa. Pensa estar protegendo o seu patrimônio, mas na verdade o está colocando à disposição. Uma casa deixada nesse clima ruim não vai provocar saudades durante a viagem, e é aí que o bicho pega.

A – Sei que não é o seu caso (aponta para B), mas se o clima estava ruim em casa, você está distante, descontraído e surge uma oportunidade legal, o diabo tenta, a coisa esquenta e aí acontece a “saudação à mandioca”.

B Ninguém é perfeito, nem de aço. Né? Lá em casa a coisa funciona diferente. Às vezes pinta uma greve de sexo, mas se vou sair sozinho ela logo fica carinhosa e não deixa de me beijar no portão.

A(Se dirigindo ao H) E você H, não fala?

H - Vocês sabem que sou viúvo e, do caráter dos mortos não se deve falar. Não faz sentido, não leva a nada. Depois, já faz tanto tempo que estou sozinho... Na época domei a minha megera... (sorri) com carinho. Um dia uma florzinha do campo apanhada no caminho para casa, no outro um picolé, às vezes uma balinha. Nunca precisei dar uma joia valiosa para compensar um grande esquecimento ou sofrimento. A data do aniversário dela ainda está marcada com vermelho na minha agenda. Sinto muito a sua falta.

BÉ, mas tem um buchicho por aí... dizem que você está namorando... Uma certa viúva. 

ASe for verdade, eu faço gosto. Tenho sempre desmentido as fofoqueiras quando me vêm com essa história, pois se fosse mesmo verdade nós, seus amigos mais próximos, já saberíamos. Amigos não compartilham só as tristezas.

H Vocês têm razão (olhando os amigos), vocês são bons camaradas, discretos e confiáveis. Não é justo que isto fique só para mim, o mais solitário da turma. A alegria, que estou experimentando, uma espécie de renascimento da alma, é sim um romance. Ando muito feliz, sei que vocês já notaram que o meu desânimo está indo embora.

BÉ fato, notamos e comentamos. Julgávamos ser algum plano comercial secreto, para voltar aos velhos tempos de suas atividades comerciais. Aliás, conduzidas com muita competência.

A Conta logo. Isso não vai sair daqui.

H Eu sei (levanta e toma um gole) Vou desabafar (senta e aperta as mãos dos companheiros) Tem quase um ano que namoro escondido, como se fosse um adolescente do nosso tempo de criança. Ela ainda não quer que ninguém saiba, principalmente os filhos. Tenta, mas não consegue começar uma conversa dessa natureza com eles. O mais velho é ainda um adolescente, tem 17 anos.  Assim, a coisa é secreta.

B – Como você faz para namorar?

H – Bem, quando não há mais movimento na rua, lá pelas 10 horas, eu passo na frente da casa dela assoviando a nossa música. Sigo o meu caminho para então nos encontramos lá na frente e darmos um passeio de mãos dadas. Nós fazemos uma volta completa na lagoa, passamos lá perto do cemitério, conversando e apreciando a lua. Depois cada um vai para sua casa.

B(olhando desconfiado para H) Volta romântica, lugar tão sossegado e ela não cede? Nenhuma “saudação à mandioca”? (todos riem)

H Não. Embora seja viúva é muito tímida. Percebo que a vontade é grande de ambos os lados. Estamos atrasados, mas por enquanto a coisa fica só no “ver a lua”.

AA conversa está boa, mas tenho que ir. Vou passar na farmácia. Curiosamente na sexta-feira fechamos mais cedo, temos menos da metade da freguesia dos outros dias da semana. Ainda não sei a razão. Parece que durante os fins de semana prestamos mais atenção em nós mesmos. Pensamos mais na diversão. As dorzinhas que batem aqui e respondem ali (apontando partes do corpo), ficam esquecidas. Segunda feira a coisa ferve.

BEu passo lá de vez em quando e vejo a galera esperando para ser atendida. É tanta gente que parece a plateia de um teatro. A manipulação do doutor ficou famosa, vem gente de todo lugar buscar. Especialmente um preparado feito com jenipapo, que o doutor inventou para acalmar a tosse, e que é tiro e queda.

H – Onde o doutor tem encontrado jenipapo? Por aqui não tenho visto. Você compra todos?

A – Todos os que estão à venda. Tenho estocado.

B - Também tenho que ir. Missão cumprida, 60 aulas semanais, em três escolas, dos três níveis. E o salário... Ó! (faz sinal com o polegar e o indicador, mostrando ser pequeno o salário que recebe). Em casa tem uma sopinha de fruta-pão, quentinha me esperando e, no friozinho que está fazendo, um cobertor de orelha, bem humorado, faz a diferença.

HEu vou dar um tempo (leva os amigos até a saída do lado esquerdo do palco, volta toma mais um gole e comenta). Meus amigos ficaram felizes com a minha novidade. É bom dividir bons sentimentos. Espalhando alegria ela cresce e multiplica. (sai do lado esquerdo, apaga a luz).  

TROCA DE CENÁRIO

 

ATO – 2  

ATORES – Cinco atores: casal (H e M) aparentando 50/60 anos (a mulher (M) faz papel de namorada - o Homem (H) de namorado); 3 homens: (A) narrador – (B) professor + guarda) - (C) farmacêutico.

PERSONAGENS – 5 personagens. Por ordem de entrada em cena:

- Narrador

H - Homem

A – farmacêutico

B - professor

M – mulher

G – guarda

 

CENÁRIO – Muro com portão de um cemitério em local ermo. Despacho de macumba do lado esquerdo do portão (velas, cachaça, alguidar, flores), banco do lado direito do portão, junto ao muro, tufos de mato no primeiro plano (opcional). O muro, plantas que aparecem sobre o muro, portão e o céu negro sobre o muro, são pintados em uma grande tela, que pode ser enrolada como um mapa. (A lua é um disco branco, preso a um náilon, que puxado por trás do cenário sobe no céu, assinalando a passagem de três horas, entre as cenas 1 e 2.) A tela tem uma fenda exatamente no meio do portão pintado, por onde passam A, B, H e M, entrando ou saindo do cemitério, durante a ação.

 

 

CENA 1 H entra no palco. Ao avistar a garrafa de cachaça junto ao despacho, na porta do cemitério, para e respira profundamente.

 

H (Homem) – Yóóóó! Não... não devo! (coça a cabeça). Os santos que me perdoem, mas vou tomar um gole em homenagem aos colegas que já estão aí dentro (aponta o cemitério) no check in, esperando o juízo final. Dizem que isso vai acontecer logo. Talvez amanhã, talvez hoje, quem sabe? Jesus vem aqui levar os justos (aponta o próprio peito) pro céu, e os pecadores (aponta a plateia) pros infernos. Um pro céu, um pro inferno. Bem... Enquanto isso não acontece vamos aproveitar a vida curta que nós temos. Cada um do seu jeito (apanha a garrafa e toma um gole). Viva Epicuro! Carpe diem! Como diziam os antigos: Aproveitem a vida! (devolve a garrafa).

Agora vou pra casa descansar, tomar banho, botar uma beca legal, pentear o cabelo, passar perfume, porque quando a lua já estiver alta, às 10 horas, o compromisso é sério. Talvez até volte aqui. (aponta com gesto largo, o cemitério, a plateia, e sai de cena, lentamente, alegre, marchando, cantando When The Saints Go Marching In:

Oh, when the saints

Oh, when the saints

Oh, when the saints go marching in

I want to be in that number

When the saints go marching in…

Alleluia brothers...

 

CENA 2 – Depois de um tempo (se possível indicado com o movimento, relativo a 3 horas, da lua no céu) entram no palco dois indivíduos locais, inteligentes, sagazes, destemidos e sem preconceito, A e B (farmacêutico e professor) um deles portando um saco vazio.

 

A (Farmacéutico) – Tudo tranquilo. Ninguém à vista. Pensei em convidar nosso amigo romântico para vir conosco, mas quanto menos gente souber dos jenipapos do cemitério é melhor. O preconceito é forte e universal aqui na Vila.

B (Professor) - Vem cá, (apontando a plateia) olha desse lado.

A - Que beleza, (mostrando a plateia com gesto largo) a lagoa está cheia de peixinhos coloridos, e eles estão brilhando ao luar.

B - Peixinhos, “peixinhas” e peixões... Alguns conhecidos (aponta algumas pessoas). Veja, estão sorrindo...

A Este lugar está sempre assim, sossegado. As pessoas daqui da vila têm um medo danado de defunto, de alma penada, de lobisomem e até de mula sem cabeça.  Eles evitam o cemitério. Não passam por aqui. Ainda mais em noite de lua cheia. (Pausa)

B - Como nós precisamos de jenipapos e eles estão ali dentro, quietinhos, bonitinhos, perfumados, e nos esperando... (B faz menção de entrar no cemitério).

A Pera aí (segurando e puxando o outro pelo braço). Você sabe por que as pessoas daqui não pegam esses jenipapos do cemitério?

BSei sim. Elas são mal informadas, e assim, preconceituosas. Pensam que estão comendo partes dos defuntos.

A - Você se lembra do nosso tempo no colégio? A turma daqui da vila, provavelmente nunca ouviu falar do Josué de Castro, o do “ciclo do caranguejo”.

B - Grande geógrafo brasileiro. Famoso e respeitado no mundo todo, brilhou nos anos 60/70, quando trabalhou na FAO, lá na ONU. Ele dizia que nas palafitas sobre o mangue, lá nos alagados, o cocô cai, o caranguejo come, e o homem come o caranguejo.

A – Caranguejo não come cocô. Acho que ele quis falar do goiamum.

B – Sem dúvida. É por isso que o goiamum precisa ser cevado durante 40 dias, para limpar e, aí sim, ser aproveitado. Por aqui todo mundo faz isso com muito cuidado. O bicho é uma delícia. 

A – Isso podia ser ensinado para aproveitarmos os caramujos africanos que se adaptaram muito bem aqui e são apreciados e comidos em muitos países ao redor do mundo. Caçados com esse objetivo deixariam de ser um problema.

“Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Jenipapo é jenipapo. Uma rosa é uma rosa... Enquanto a vida durar. A natureza é um grande tubo de ensaio e tudo está em constante transformação.

B - Você tem razão. Pouca diferença faz se foi gente, cocô de gente, de bicho ou lixo, que estercou e tornou viçosas as flores dos nossos jardins. Viu? Deu até poesia. (Risos)

A – É verdade. Tudo se transforma. No Japão, onde a água é preciosa, há muito tempo eles retiram dos esgotos das cidades o adubo para produzir ótimos tomates e vários legumes.

B - Com os óleos dos esgotos fazem sabonetes para tomar banho e lavar as mãos. A água que sai de lá, depois de tratada fica sem cheiro, cor e sabor, limpinha. É água pura, boa até para se beber.

A – Quem sabe um dia o esgoto de Araçás será tratado assim.

B – E o de Terra Vermelha também. Os dois poluem horrivelmente a foz do rio Jucu.

A - Vamos entrar, mas olha: (tocando o peito do companheiro com o indicador) um pra você, um pra mim; um pra você, um pra mim. Partes iguais. Fechado? 

B – Fechado, vamos lá. (parados na porta do cemitério, enquanto A acende a lanterna) Você se lembra das irmãs Cajazeiras? Do “Bem Amado”, novela do Dias Gomes? Era jenipapina que elas ofereciam ao Coronel Odorico Paraguaçu, e ele ficava todo assanhado. Hoje estou precisando mesmo é do xarope desta fruta, o que você faz muito bem e que acaba com a tosse.

A – Com licença meus amigos. (entrando no cemitério) Descansem em paz. Não vamos perturbar vocês.

B – (de jeito gaiato, mas reverenciando com uma inclinação de respeito) Boa noite a todos os ouvintes.

 

Cena 3Os dois entram no cemitério levando uma sacola vazia.

A - (Falando de trás do muro). Aqui neste pé só tem dois jenipapos, lá no alto: um pra você, um pra mim. (Pausa)

Vou sacudir o galho (Barulho de galho sendo sacudido e dois jenipapos são lançados de dentro do cemitério para a rua, em frente ao portão. A rua ainda está deserta).

B – Poxa, perdemos dois.

A Que nada, caíram ali perto da porta do cemitério. Na saída a gente pega todos dois.

B Aqui acabou. Só tinha aqueles. Vamos pro outro pé, lá no fundo do cemitério.

AAquele lá tem muito mais. Não esqueça: um pra você, um pra mim.

B – Pega a sacola. Vamos lá. O cemitério é grande.

 

CENA 4Silêncio enquanto A e B se deslocam para o outro jenipapeiro, que está lá no fundo do cemitério. Após alguns segundos entra em cena, pela lateral da plateia, um casal, que segue para o palco, com H falando. (casal, aparentando 50/60 anos).

H (Homem) – Nos somos novos. Velho é o que está enferrujado, o que não funciona direito. Nós somos atores, decoramos texto, representamos.

Você está com o fogo cada vez mais aceso e eu, modéstia a parte, em oposição ao Bolt da rapidinha (faz gesto imitando o famoso corredor), sou mais o rei romântico Roberto Carlos: sou uma brasa mora (faz gesto imitando RC, e tenta agarrar M)

M (Mulher) – (afastando H) Olha a lua, que linda!

H – Mais cedo, olhando lá da Vila, do outro lado da lagoa, ela quase tocava o muro, parecia que estava saindo de dentro do cemitério.

M – Lua cheia, sexta-feira, dia 13, e o gato preto que cruzou a estrada na nossa frente, quando vínhamos para cá, deixam as coisas esquisitas hoje.

H – Vamos sentar ali (aponta o banco) no nosso banquinho. Aqui é o lugar mais sossegado que conheço. Bom “pros véios” namorar. Afinal, esta é a porta de entrada da nossa futura residência permanente. Sente-se e sinta-se em casa. (Riem, sentam no banco iniciam caricias.)

M – (Logo a mulher se levanta, aparentando preocupação) Hoje estou tensa. Depois de ouvir lá na igreja, que o fim do mundo está próximo, que Jesus e o Diabo vêm aqui para repartir as almas dos mortos e dos vivos: uma pro céu, uma pro inferno, fico grilada neste lugar. Não consigo descontrair.

Dizem que eles vão começar pelas almas dos mortos, e esses estão bem aqui, atrás de nós.

H  Ah! Qual é? Você se lembra de cada coisa... Vem pra cá meu bem! (Apontando o cemitério diz) A turma aí dentro está sossegada. Esse banquinho é nosso velho conhecido e hoje não vai ser diferente. Relaxa. (Puxa a mulher para o banco, ela senta e reiniciam carícias, interrompidas quando ouvem a voz vinda de dentro do cemitério. H e M tentam se levantar para correr, reclamam em surdina ou com gestos, que lhes faltam as pernas. Eles ficam paralisados, apavorados, sentados, colados no muro, olhos arregalados).

 

CENA 5

A (Falando de dentro do cemitério) Um pra você, um pra mim; um pra você, um pra mim; um pra você, um pra mim... Aqui também acabou. Vamos embora?

B - OK. Agora vamos lá fora, pra pegar aqueles dois que estão na porta do cemitério.

(O casal, que está paralisado no banco, se encolhe abraçados e não é visto pelos dois homens que saem do cemitério. H e M, de soslaio, veem quando os dois homens recolhem os dois jenipapos e saem. O casal se cutuca, descontrai).

M – Quem diria: o farmacêutico e o professor, na calada da noite fazendo arte. Será que os jenipapos são pra comer, fazer licor, ou doce?

H Sei que eles são pessoas inteligentes, espertas, sabem aproveitar as coisas. (estalando os dedos) Há! É o xarope! Xarope de jenipapo do doutor.

M – Bem lembrado. O xarope do doutor tem tido grande procura. Haja jenipapo pra tanta gente gripada.

Provavelmente eles vêm aqui de noite para não provocar falatório.

H - A imaginação do povo é fértil. Se assistissem essa cena logo diriam que o xarope do doutor cura porque é bruxaria, feitiçaria sabe lá o que?

M – Puxa vida! Que susto eles nos deram. E nem nos viram

H - Ou fingiram que não viram. São amigos e discretos. Não iriam nos perturbar. Jogávamos dominó na boca da noite, eu e os dois, e não falaram da caçada aos jenipapos. Bem, eu também omiti parte de uma história que contei. Deixa pra lá...

M – Muitas vezes a omissão é prudência ou até necessidade numa narrativa, para não se desviar do foco, melhorar o entendimento ou até para segurança do ouvinte. Tem muita história que é preferível não ser ouvida.

H – Um amigo meu dizia uma coisa muito interessante a respeito: “Uma mesma história deve ser contada de maneiras diferentes para pessoas diferentes, se você quiser ser entendido por todos”. Ele era um advogado muito inteligente e popular, infelizmente já está aí dentro no check in. Willian Zogaib deixou muita saudade.

M – Bem, agora estou tranquila. Vai lá ver se eles já foram.

 

CENA 6 – H levanta, vai até onde A e B saíram do palco e informa a M que A e B já estão longe, fazendo gesto com a mão. H volta saltitante e pega M pela mão. Segue para a porta do cemitério cantando “O AMOR VENCEU”, puxando a mulher para dentro do cemitério.  A música é cantada por H, M e G, toda ação acontece no tempo da música.

H Peguei a gata no escuro (entram no cemitério) atrás do muro, e ela gritou.

M Ai (de dentro do cemitério)

HO guarda vinha passando ouviu barulho e se aproximou (o guarda chega à porta do cemitério e dá de cara com a mulher saindo e se ajeitando) A gata, se recompondo vendo o guarda adiantou.

M – É coisa de amor, uma festinha que rolou.

H O guarda falou:

G Bonito! Isso é indecência, é CONTRAVENÇÃO. 

H - Em cana nos levou para fazer a averiguação (todos saem do palco (lado direito), conduzidos pelo guarda. H e M, com as mãos para trás, como se estivessem algemados, cabeça baixa. O homem (H) volta imediatamente).

H (se dirigindo a plateia) Ao delegado eu expliquei que amar não é infração. Que motel de “rapaz” pobre (abaixa a cabeça, coloca as duas mãos no peito expressando humildade e depois aponta com vigor o muro onde estava) é muro na escuridão. (H sai do palco e volta imediatamente trazendo dinheiro e a boa nova para a plateia). Autoridade boa gente nosso lado aliviou. Vaquinha entre os soldados ele providenciou (H mostra dinheiro sacudindo notas no ar) De carona pro motel a RP nos levou (luzes vermelhas começam a piscar, lado direito, fora do palco. H sai com M para pegar a RP (luz vermelha apaga) H volta rapidamente, com cabelo e roupa desarrumada, para a última frase e, arrumando a roupa, encerra a música) Durante aquela noite mais de uma vez a gata miou.

 

 

TROCA DE CENÁRIO

ATO – 3

Atores – M, A e G (H e crianças ficam invisíveis)

CENÁRIO: Fachada lateral da casa de M, pintada em grande tela que deve ocupar 2/3 no sentido do centro para o lado esquerdo do palco. A janela do cenário deve ter imitação de vidros foscos, translúcidos. A entrada da casa fica oculta do lado esquerdo da tela cenário. A casa deve ter luz interna para ser acesa na hora oportuna.

CENA - 1

M (Mulher) (do meio do palco (M) dá adeus ao companheiro (H) que está oculto e ela vai para abrir a casa) Esta fechadura precisa de grafite para deslizar melhor, este barulho vai acordar todo mundo (barulho de fechadura e porta começando a abrir, a luz acende no interior da casa e logo acontecem aplausos e gritinhos infantis)

Crianças (ou imitação) no interior da casa - Viva mamãe! Viva mamãe! (Cessado os aplausos uma voz adolescente diz, de dentro da casa):

CENA – 2

(Esta cena se desenrola no interior da casa, sombras aparecem no vidro da janela sugerindo movimentação de pessoas no interior)

Voz de Adolescente - “Mamãe, não precisa explicar nada. Todo mundo já percebeu que a senhora está muito mais alegre este ano. Estão aqui com a gente, desde cedo, nossos amigos, o doutor e o soldado. Eles conversaram muito com a gente e nós entendemos tudo. A senhora está amando e merece ser feliz. Nós não somos egoístas e amor, quanto mais se reparte, maior fica.

Estamos esperando a senhora desde cedo. Deu tempo, do doutor nos ensinar uma música romântica, em inglês, que tem tudo a ver com este momento: “As time goes by”. A música diz assim: “ com o passar do tempo o mundo sempre dirá bem vindo aos que amam”. Não é isso doutor? Não é bonito mamãe? É lindo! Nós compreendemos.

M(emocionada) Meus queridos. Lindos mesmos são vocês. Venham cá para um grande abraço (barulho de crianças correndo para o abraço). Que surpresa maravilhosa. Estou muito feliz com a compreensão e o carinho de vocês.

Agora, vou levar nossos amigos conselheiros até a porta, pois é tarde, estou preocupada com eles e quero conversar com vocês ainda hoje, escovem os dentes e me esperem na cama (saem da casa: G, A e M).

M – (M fora da casa com A e G) Muito obrigado, vocês foram fantásticos, amanhã venham almoçar conosco. As alianças já podem sair do bolso do nosso amigo. Vamos oficializar o noivado.

G (Guarda) – Eu quero pedir desculpa a vocês. Fui precipitado ao aplicar os rigores da lei, sem ponderar as circunstâncias. Vocês não estavam perturbando ninguém, e a coisa rolava entre as quatro paredes do cemitério.

Ao ouvir o seu grito pensei tratar-se de violência e assim agi por impulso, triste engano, não parei, não pensei, me precipitei. Desculpa senhora, meus respeitos.

M – Não tenho o que desculpar só agradecer. O que você fez resultou nesta noite maravilhosa. Acabou nos prestando uma grande ajuda.  Você foi severo na sua função, mas educado e gentil no trato. Deu tudo certo no final. O bom senso e tolerância do nobre delegado reverteram a situação: o castigo virou prêmio. A noite no motel foi muito confortável. Não fomos lá antes, porque o porteiro é meu sobrinho e iria me reconhecer. O negócio da falta de dinheiro e do rapaz pobre foi só para comover você, desculpa amarela. Né?  Pegamos o dinheiro da vaquinha dos soldados, para não sermos pegos na mentira. Nós vamos devolver. A conversa que você e o doutor tiveram com nossos filhos jamais poderá ser paga, foi maravilhosa, de inspiração divina. Muito obrigado.

A (Farmacêutico) – Fico contente que seja assim. O que nós fizemos, na verdade, foi quase nada, seus filhos são muito inteligentes e o amor que eles têm por você é enorme.

M – Eu vacilei, devia ter confiado mais neles. Na verdade foi omissão, covardia da minha parte. Na era da incerteza, nesse mundo sem ética, de valores invertidos, onde quem troca socos no meio de um ringue iluminado recebe aplausos e medalhas, e quem ama no escuro é censurada, bate uma insegurança.

A – (foleando o livro Identidade Capixaba) Me dá licença. Cheguem aqui pra perto da luz. Vou ler um trechinho de um livro que folheei enquanto esperávamos em sua casa.  Vem a calhar (A lê no livro):

“... Os índios que viviam guerreando, canibalizando e buscando a “morte bonita” antes de conhecerem a civilização, parecem confirmar a tese de que a civilização reprime o instinto agressivo do bicho homem. Entretanto, algumas instituições da civilização descuidam da convivência, promovendo o desprezo pela vida e a indiferença pelo próximo. História, política, economia e religião exibem atitudes pouco civilizadas. A história valoriza a guerra em detrimento da paz (conhecemos mais Napoleão do que Pasteur ou Gandhi). Políticas econômicas têm mantido privilégios e ampliado diferenças (propiciando conflitos, desilusões e crimes. Pagamos para ver e até concedemos medalhas olímpicas a homens e mulheres, que lutam em ringues no meio de plateias, muitas vezes com resultados fatais (se ao invés de socos trocassem carinhos, seriam censurados, vistos com desconfiança ou condenados por atentado ao pudor)”. (fechando o livro cita o título e o autor) IDENTIDADE CAPIXABA, livro de autor local, Kleber Galvêas.

G – Perfeito! Vivendo e aprendendo. Amanhã contaremos ao nosso amigo tudo que aconteceu aqui nesta casa, e ele virá conosco para o almoço.

A - Depois de polir as alianças.

M - Muito obrigado meus amigos. Vocês são muito generosos, deixaram suas famílias, por um tempo, para nos ajudar a construir uma família aqui. Serão sempre bem vindos. (M se despede com abraços e depois com aceno de mão, entra em casa, apaga a luz)

A – Vamos por aqui, a vida continua com o passar do tempo. Nós devemos lembrar-nos disto. (dando um empurrãozinho em G) O beijo que você interrompeu não ficará só nisto. Um beijo é sempre um beijo (sai cantando “As time goes by”) ”You must  remember this. A kiss is still a kiss...”

 

APAGA A LUZ e, instantaneamente, com todos os atores no palco, no escuro, soltam em uníssono:

Todos - MINNHAUUUUU!!!!

Acende a luz e é feito o agradecimento pelos quatro atores e o diretor.

 

MATERIAL CÊNICO

- Tela (4m x 3m) mostrando o interior de um bar (Ato 1);

- Tela (4m x 3 m) onde está pintados: o muro (branco), o portão (azul), lua cheia que se desloca, e plantas, aparecendo sobre o muro (Ato 2);

- Tela mostrando a fachada lateral da casa de M (Ato 3);

- mesa com 4 cadeiras;

- 2 garrafas de cerveja e 4 copos;

- despacho contendo uma garrafa de cachaça cheia de água;

- banco de madeira para 2 pessoas;

- 2 jenipapos (naturais ou artificiais);

- i saco e jornais p/fazerem volume dentro do saco, após a colheita;

- Galho de árvore;

- lanterna com luz vermelha, se possível, giratória;

- fechadura que faz barulho;

- dominó;

- livro Identidade Capixaba;

- luz do interior da casa.

 

FIGURINOS

- Narrador: paletó, óculos, calça, sapato;

- Homem: - Ato 1 - bermuda, sandália, boné, camisa ou camiseta;

- Jogadores de dominó: roupa do cotidiano:

- Farmacêutico: calça, camisa, boné, saco;

- Professor: calça, camisa, boné;

- Homem: calça com cinto, camisa de pano, sapato, notas de dinheiro;

- Mulher: calça comprida, blusa, sapato, enfeite para cabeça;

- Guarda: casaco de policial, calça de policial, sapato, quepe, bigode, cassetete. 

 

Nota: Tempo previsto para a ação: pouco mais de 1 hora

A linguagem do esquete pode ser adaptada a usos e costumes de uma região, ou ao ator, de forma que pareça natural.

Esquete inspirado em piada veiculada na Internet e na música do carnaval de 2016 “O Amor Venceu”, de Kleber Galvêas.

Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115  www.galveas.com  fevereiro, 2016

 


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