Pinturas
|
JABÔ de JABUTICABA Durante os anos 1967/68
tomei muito vinho em Portugal. No carnaval de 1968 exagerei. Tomei tanto que as
papilas da minha língua cresceram e ficaram pretas. No dia seguinte acordei de
ressaca e, ao escovar os dentes, olhando no espelho, pensei que fosse cabelo
nascendo na língua. Apavorado fui para a Faculdade onde estudava e
procurei o professor de estomatologia (médico dentista em Portugal). Estava
dando aula prática e gostou da interrupção. Depois de mostrar minha língua a
cada um de seus alunos, propôs que apresentassem um diagnóstico. Ninguém
acertou. Ele esclareceu o assunto e me dispensou com a receita: ”tome água”.
Ganhou minha admiração e o aplauso dos alunos. Em Portugal é comum o vinho
acompanhar as refeições. O restaurante universitário oferecia no bandejão meia
garrafa para cada estudante. Nesses dois anos estive
hospedado na casa do pintor Peniche Galveias, neto de um irmão do meu
bisavô. Ele foi artista de vanguarda nas décadas de 40/50. Tenho dele um
guache e uma serigrafia abstratos, dessa época. Em 1960 desistiu da produção
artística e se fez empresário de sucesso. Sua viúva, Amélia Galveias, mantém
operante a Galeria São Francisco, no Chiado, Lisboa. Todo fim de ano recebiam,
em suas lojas, presentes de caixas de vinho dos fornecedores. Sua adega era bem
suprida. Peniche Galveias não bebia; seu fígado fora arruinado por uma hepatite
que contraiu em Cabo Verde, onde foi soldado durante a Segunda Guerra. Seu
filho preferia comprimidos efervescentes de vitamina C. Sua esposa,
desestimulada por lhe faltar companhia, deixava que as garrafas de vinho se
multiplicassem na adega. Tomei vinhos de todos os tipos, datas e qualidades.
Nos restaurantes optávamos pelo vinho da casa, e em casa a empregada, quando
voltava das férias, nos brindava com vinho artesanal, produzido na quinta de
seus parentes alentejanos. Ainda hoje conservo uma garrafa de Vinho do Porto
datada de 1947 (ano em que nasci), trazida daquela adega. Não há bebida com
tradição mais bem documentada que a do vinho. Na Bíblia são inúmeras as
citações. No novo testamento, a pedido da sua mãe, Jesus fez o primeiro
milagre: transformou água em vinho. Gosto muito de vinho, mas aqui no Brasil
tenho preferido a refrescante e coloquial cerveja. Uma cachacinha ou jurubeba
antes das refeições e um licor depois caem muito bem. Quando a TV
mostrou Lula, no pomar do Palácio do Alvorada, apresentando a Putin um pé de
jabuticaba cujos frutos ele saboreou, pensei: agora o brasileiro vai se
interessar pela jabuticaba. Não aconteceu. Há alguns anos fui surpreendido pelo sabor e pelo efeito, no
dia seguinte, do vinho seco de jabuticaba, feito no interior do Espírito Santo.
Só encontrei atributos positivos nessa bebida. A jabuticabeira é uma
árvore perene, nativa, que produz frutos aos borbotões. Não precisa de adubo,
defensivos, irrigação, replantio, poda, nem cuidados especiais. Quem pesquisar
vai se encantar com as qualidades dos componentes dessa fruta, muito superiores
às boas qualidades encontradas na uva; e sem agrotóxicos. O “vinho” de
jabuticaba, que chamo de “jabot” ou jabô, merece atenção da mídia nacional, de
empresários, e estímulo do governo. Esse nome é o mesmo dado em diversos países
a uma espécie de gravata usada no passado pelos nobres; hoje, parte do
traje oficial dos mais altos magistrados de tribunais nacionais ao redor do
mundo. Essa “gravata” lembra um guardanapo sofisticado, cheio de babados, preso
ao colarinho, pronto para uma elegante refeição regada a jabô. A mídia que sempre
gasta tinta e se esforça muito para fazer de cada brasileiro um sommelier, como
já fez de cada um de nós um técnico em futebol, pode esquecer um pouco a uva e
o vinho e resgatar do esquecimento a jurubeba e a jabuticaba. Nós temos dado tiros
nos pés e caminhado para mais uma emboscada cultural/econômica. Dourar o produto
alienígena, mistificar suas propriedades e esquecer-se da fruta nativa nos
leva, mais uma vez, a um desvio sombrio da nossa vocação e falsa
identidade. Kleber Galvêas, pintor. www.galveas.com Tel. (27) 3244 7115 - julho, 2015 |