DOM QUIXOTE: QUATROCENTOS ANOS.
O livro de Cervantes, “Dom Quixote” (protetor da coxa numa armadura
medieval, ou verdade em aramaico) é o mais difundido no mundo. Foi traduzido
para o inglês antes da Bíblia e chegou ao Oriente, antes de ser
lançada a segunda parte da história (1615). Conquistou ilustradores
como Doré, Daumier, Hogarth, Goya e Picasso. Influenciou Dostoievski,
Shakespeare (que faleceu no mesmo dia que Cervantes) Walter Scott, Charles Dickens,
Flaubert, Joyce, Jorge Luiz Borges, Machado de Assis, Lima Barreto...
Dom Quixote é uma obra genial escrita no olho do furacão da Inquisição
(Espanha). É sátira cruel ao homem, que abdica da individualidade,
moldando sua vida e sentimentos pela palavra escrita e, que é capaz de
jurar, com a mão sobre o livro, ter fé, seguir os preceitos e dizer
a verdade. Novela composta com inteligência e sutileza, foi examinada e
aprovada por doutores, em teologia, de tribunais poderosos e sem paralelo na
história. Galileu, seu contemporâneo (1564-1642) que desenvolveu
o Método Experimental, não tem a sutileza de Cervantes. Publica
as provas da verdade do sistema de Copérnico e, no ano seguinte, tem que
abjurar suas crenças perante a Inquisição.
Dom Quixote fez triste figura, por incorporar a ética da cavalaria medieval
num mundo já moderno. Em ambiente religioso, autoritário e místico,
cuja sociedade se tornara comercial (grandes navegações) e capitalista
(em Londres, 1564, abre a primeira Bolsa de Valores e em Amsterdã, 1609,
o primeiro Banco).
Sansão Carrasco personifica a amizade e determinação. Só aparece
na segunda parte do livro, publicada 10 anos depois da primeira, me encanta e é tema
das minhas pinturas recentes. O bacharel ardiloso parte, duas vezes, no lombo
de um cavalo e por quilômetros, metido numa armadura incômoda e fora
de época, disfarçado de Cavaleiro dos Espelhos e Cavaleiro da Branca
Lua, persegue o amigo até vencê-lo, trazendo-o para casa.
Embora as religiões tenham evoluído por força do desenvolvimento
das ciências (que tirou a terra do centro do universo e ao homem seu status
divino especial, de imagem e semelhança de Deus), a condição
humana não mais será a mesma após o séc. XVII. Espinosa,
em 1654, sugere que Ciência e Bíblia nunca poderão ser reconciliadas.
Produto de uma época que gerou Shakespeare e Montaigne, Cervantes me lembra,
lá do alto, dois escritores cariocas: Machado de Assis e Lima Barreto. É sempre
um prazer reler qualquer um dos cinco: leves, risonhos e profundos.
Cristão de origem judaica, que diz ser “ghost writer” de um árabe
(Cid Hamete Benengeli), preconiza o ecumenismo. Ele vive e escreve sua sátira,
no ponto de encontro das três grandes religiões de inspiração
divina: Islamismo, Judaísmo e Cristianismo.
Uma das passagens do livro que sempre lembro, é a do louco de Sevilha.
Quando ele já ganhava a liberdade por ordem do Arcebispo, um outro enjaulado,
ao ver o colega saindo, rogou praga contra a cidade dizendo ser Júpiter
e ameaçando com privação de chuva. Ao ver a preocupação
dos responsáveis por sua libertação, diante destas ameaças,
o anistiado disse ao louco ameaçador: “Se és Júpiter,
eu sou Netuno, rei das águas e anularei sua praga”. O que bastou
para reconsiderarem, e alegando resguardar a cidade da disputa entre fabulosas
entidades, o manterem no hospício.
Dom Quixote, como todos nós, é o que pensa e acredita ser. Diferente
de Galileu e Newton, que utilizam as próprias percepções
para fazer deduções, ele aceita a experiência alheia: incorpora
Roldão e Amadis. Galileu e Newton edificaram a ciência moderna.
D. Quixote, no leito de morte, reconhece seu engano medieval.
Kleber Galvêas – pintor. Tel. 3244 7115 atelie@galveas.com 11/2006
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