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CABOCLO QUER APITO

Por definição, a cultura (popular ou erudita) é manifestação do povo. Quando administrada por força superior, deixa de ser cultura e passa a ser ideologia, recebendo o sufixo “ismo”: getulismo, imperialismo, comunismo... Essa transição se torna ainda mais perniciosa quando o autoritarismo de Estado é transferido para empresas.

Na primeira metade do séc. XX, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Câmara Cascudo e, aqui no Espírito Santo, Guilherme Santos Neves documentaram a exuberância com que a cultura nacional se manifestava e frutificava nas capitais, nas cidades e no sertão do Brasil.

Durante a Ditadura Vargas, fruto de trabalho do ministro Capanema, Getúlio institucionalizou a Cultura. A partir de então, constituíram-se “autoridades” culturais: ministros, secretários, diretores. O problema é que, nesses cargos oficiais, gestores assumem atitudes de produtores culturais, transformando parceria em paternalismo e cultura em ideologia.

Defendemos a tese de que cargos públicos devem ser ocupados por administradores, burocratas competentes, e não por artistas. Órgãos públicos devem cuidar do patrimônio cultural físico e intelectual (aquilo que o tempo peneirou, o povo consagrou e que já faz parte da nossa riqueza material, cognitiva e afetiva) e atender aos Artigos 215 e 216 da Constituição. Artistas devem produzir suas obras, em que são insubstituíveis, e os projetos devem ser de iniciativa popular, conquistando a parceria do governo se corresponderem à sua proposta política referendada nas urnas.

O autoritarismo na área cultural implantado na era Vargas foi privatizado no governo Sarney (1986), quando promulgou a “Lei Sarney”, mãe da Lei Rouanet, que serviu de base para as leis de incentivo à cultura dos Estados e municípios. Assim, empresas e sindicatos passaram a dispor do nosso dinheiro (abatem o que investem das suas obrigações fiscais: IR, ICMS, ISS, IPTU), para promoverem, com grande mídia, o que é do seu interesse. Sufocam, com nossa grana, a iniciativa popular que, modesta, é encarada como de inferior categoria. Como geralmente investem em eventos alienígenas caros, desprezando os valores locais, obtêm grande mídia. O que consolidou nas mentes dos capixabas o provincianismo: a ideia de que o importante é o que vem da metrópole.

Do orçamento da Secretaria de Cultura do governo capixaba, menos de 10% têm chance de chegar às mãos de quem faz cultura, através de editais, enquanto o investimento das nossas empresas em cultura, com as benesses das isenções fiscais, supera em mais de 10 vezes o que o Estado disponibiliza para artistas e ativistas da terra.

Durante a gestão do governador Eurico Rezende, o vice-governador José Carlos da Fonseca, em parceria com a Secretária da Educação, Anna Bernardes da Silveira Rocha, minimizou as distorções da legislação, ressuscitando e prestigiando o Conselho Estadual de Cultura. O próximo passo seria a criação do Fundo de Cultura. Criado nos últimos dias do tumultuado governo José Ignácio, logo foi ignorado pelo governo seguinte (PH), que optou por isenções fiscais das empresas e, portanto, pela continuação do autoritarismo cultural empresarial.

A propósito, uma marchinha de carnaval de H. Lobo e Milton de Oliveira vem a calhar: “... Índio não quer colar (coleira)! Índio quer apito (comandar)!”. Nós, caboclos, também!

Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 www.galveas.com dezembro, 2016

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