A VOLTA DO CARRETEL

Leonardo da Vinci não falava de arte, mas de experiência estética, quando sugeria a observação de manchas nos muros antigos. Elas proporcionam prazer, enriquecendo nossas vidas com formas, cores e sugestões. Mas não são obras de arte, que por definição é relação entre humanos.
O mictório usado por Duchamp em seu famoso “ready-made” foi perdido, veio ao Brasil um similar, mostrando que a peça em si não tinha importância para o artista, mas a idéia: a vivência estética de fatos do cotidiano. Quando objetos similares são entronizados numa decoração ou galeria, como se fossem esculturas, o show pode ser belo, mas patético.
Um carretel, desses que enrolam cabos de aço, perdido no mar, despertou sentimentos que mudaram minha vida. Era 1º de março de 1974, estava com minha namorada na Praia da Costa em frente ao edifício Guruçá. Éramos professores aproveitando o final das férias. Vimos na crista de uma onda, ao longe, um objeto que parecia ser o tampo de uma mesa redonda. Brincando, falei para Anita que nossos móveis estavam chegando. Animados, nadando, fomos buscar. Depois limpamos, com areia, manchas de óleo do carretel de madeira, de 1m de diâmetro. Rimos muito e com ele dentro do carro, fomos ao cartório marcar o casamento para dali a um mês. Namoramos dois anos, mas este carretel nos enrola há mais de 30 anos e três filhos.
A volta do carretel não é a volta do parafuso que, usando o princípio do plano inclinado, prende e aperta corpos distintos (a porca que o diga). O carretel em questão não são os troncos roliços que, colocados sob corpos pesados facilitam o deslocamento (resultando obras faraônicas). Falo dos carretéis com rebordos que nunca enrolaram nada, expostos no Museu Ferroviário, Vila Velha. O vernissage com rega-bofe de primeira, pago com dinheiro público, ficou restrito a convidados da empresa. Com o autoritarismo cultural privatizado, graças a escabrosas leis de incentivo, pagamos festas particulares e experiências exóticas.
Em todo ambiente “cult” existem sibilas e elas ao verem tantos carretéis vazios no museu, opinaram: “Seremos todos enrolados?”; “Uma visita ao parque de inservíveis da Vale é provocativa, mereceria coquetel ainda mais generoso?”; “E no lixão, quanta provocação! Será champanha e caviar?”. Concordo com o expositor quando diz que sua intenção é “provocar o público” e, se referindo ao museu: “Ele proporciona uma estrutura para que nós façamos uma experiência artística”.
Meu avô dizia que questionar quem usa saia (mulher, padre e juiz) é prejuízo certo. Eu acrescento o artista. Ele tem sempre razão: provocou este texto.
O que quero focar é a postura da nossa mídia que, transcende ao desestímulo, e a conseqüência disso para a cultura local. Falar de qualquer exposição de arte é sempre bom para todos os envolvidos na criação e produção artística. Por associação de idéias todos nós somos lembrados. Entretanto, o persistente destaque dado ao exótico, sempre em primeira página colorida, sedimentou na mente dos capixabas, que isto é primeira categoria, merece ser visto. Enquanto nossas realizações, vistas em espaços secundários, são quase ignoradas ou colocadas em categoria inferior em nossas mentes.
Corrigir essa distorção é um desafio para a grande mídia capixaba. Se a volta desses carretéis não despertar amor, prender como parafuso, nem mover corpos pesados, que nos desenrole dessa situação psicológica.
Kleber Galvêas – pintor. Tel.: 3244-7115 www.galveas.com 11/05